Se no primeiro álbum o material
já estava pronto, para o segundo disco não havia nada. Mesmo assim, o projeto
era ambicioso. Especialmente depois que o Renato, ao retornar de um refúgio em
Brasília, descobrir que Dado, Billy e Bonfá haviam trabalhado incessantemente
em estúdio durante este mesmo período. Com material de sobra, a vontade era não
só lançar um segundo disco, mas sim lançar um álbum duplo!
A ideia já tinha sido batizada de
Mitologia & Intuição, pois Renato
sempre fora um sujeito ambicioso. Naturalmente, a gravadora vetou, “já que iria
custar o dobro do preço”. Na concepção da banda entrariam canções mais
experimentais criadas na chamada pré-produção, como, por exemplo, a
instrumental “Grande Inverno na Rússia” e mais algumas relíquias que Renato
resgataria da época de Trovador Solitário
como “Eu Sei” e “Faroeste Caboclo”. Outra música que faria parte do álbum é,
acreditem, “O Juízo Final”, de Nelson Cavaquinho, mas baseada na versão cantada
por Clara Nunes. Já gravada pela banda, teve que ser abortada a partir do
momento que o disco duplo não vingou.
Como toda multinacional, o que
preocupava o pessoal da gravadora EMI-Odeon
era que o grupo ao menos repetisse o sucesso do trabalho anterior, algo em
torno de 80 mil cópias vendidas, cobrindo todos os custos de produção e ainda
gerando lucros. Então, a EMI queria que a fórmula do primeiro disco fosse
repetida.
Aí então houve uma pequena queda
de braço. Se já não podiam lançar um álbum duplo, repetir a fórmula do anterior
estava totalmente fora de cogitação. Ao menos queriam liberdade de criação e
fazer o disco do jeito que queriam. Se a
banda não via problemas em começar o disco com uma canção chamada “Daniel na
Cova dos Leões”, a EMI questionou “Abrir o disco com uma música de igreja?” A
Legião peitou os executivos e fez o disco assim mesmo. Ao descobrirem que a
letra tratava de sexo, então...
Bem, contextualizado todo o cenário
que envolveu a produção e gravação deste segundo disco, vamos à obra,
propriamente dita.
Neste álbum, as guitarras deram lugar
aos violões. Nuances Folk e mais intimistas, substituíram a porrada do
primeiro. Antes de ouvirmos a já citada “Daniel na Cova dos Leões”, surge uma
vinheta com um trecho de “A Internacional Comunista” e “Será”, enquanto se
percorre o dial do rádio, abrindo o disco. “Daniel...”, foi composta ainda
durante os ensaios da primeira turnê, quando o Billy fez uma linha de baixo inspirada.
Para manter o nível, Renato apresentava uma pena ainda mais afiada retratando
sexo à sua maneira. Versos como “teu corpo é meu espelho em ti navego, eu sei
que a tua correnteza não tem direção”, eram reveladores, mas poucos sacaram. Do
amor dito normal, uma pintura desenhada em “Acrilic On Canvas”, com cores,
misturas, memórias, promessas e desculpas sem final feliz. Por outro lado,
“Eduardo e Monica” superam as diferenças de classe e de personalidade, se
completam, se entendem, reverenciam o amor! Ah, o amor.
A canção “Quase Sem Querer”, na
opinião do Renato era a mais alegre e com maior potencial para um hit. Nela,
mais uma prova de que seu lirismo havia crescido vertiginosamente. Muitos
aprendem a dizer eu te amo, I love you, je t´aime, ti amo, em vários idiomas,
Renato preferia dizer “Me disseram que você estava chorando e foi então que eu
percebi como lhe quero tanto”. E o que falar daqueles violões ao final desta
música? São quase dois minutos de dois, três ou sei lá quantos sons diferentes,
um fim apoteótico. A poesia também estava estampada numa das canções mais
perfeitas do mundo Pop de todos os tempos, “Tempo Perdido”. A música combina
harmonia, melodia e letra de uma forma absurda. Ela vai criando corpo, aumentando
a intensidade, segurando a onda e terminando de forma arrebatadora. Cria em
nosso imaginário paisagens como “A tempestade que chega é da cor dos teus olhos
castanhos, então me abraça forte e me diz mais uma vez que já estamos distantes
de tudo”. Quem nunca quis estar dentro dum abraço daqueles em que pode a acabar
o mundo, mas eu não estou nem aí? Estrategicamente há um tema instrumental,
“Central do Brasil”, antes de “Tempo Perdido” e um violãozinho ao final, numa
espécie de coda. Absolutamente perfeito!
Já o lado B do Dois resgata a temática do primeiro
disco, embora com uma sonoridade diferente, exceto por “Metrópole”, que retrata
o descaso da saúde pública, a falta de empatia com o outro e o espetáculo da
desgraça alheia. E olha, que ainda nem tínhamos Cidade Alerta e afins. “Plantas
Embaixo do Aquário” clama por paz e que se “Faça do bom senso a nova ordem”,
algo utópico hoje em dia.
Este lado dois vai do retrato
social de “Música Urbana 2” à desesperança de “Andrea Doria”, aliás, pra mim, a
melhor letra feita pelo Renato. Nela é fácil constatar exatamente os dias
atuais como “Às vezes parecia que era só improvisar e o mundo então seria um
livro aberto. Até chegar o dia em que tentamos ter demais, vendendo fácil o que
não tinha preço (...) quero ter alguém com quem conversar, alguém que depois
não use o que eu disse contra mim". Mais direto impossível.
Por falar em dias atuais o que
dizer de versos como “Quero trabalhar em paz, não é muito o que lhe peço. Eu
quero trabalho honesto em vez de escravidão”. Mais adiante Renato profetizava
“O céu já foi azul, mas agora é cinza. E o que era verde aqui já não existe mais”,
isso para ficarmos só em dois versos de “Fábrica” que aproveitou a linha
melódica de “Desemprego”, uma composição anterior ao primeiro trabalho, mas com
uma nova roupagem.
A canção “’Índios’” é um caso à parte. O disco já estava praticamente
pronto, seguindo para a mixagem. Porém havia uma canção sem letra e que o Renato
não queria deixá-la de fora. Então ele resolveu sentar num canto e escrever uma
letra. Até aí tudo bem, não fosse o fato da letra ter nove estrofes e mais um
refrão que se repetia na primeira e na segunda parte da música. Tudo bem também
se alguém fizer uma letra rapidinha meio sem pé nem cabeça, até mesmo num
guardanapo de botequim. Agora quando esse alguém resolve escrever “Quem me dera
ao menos uma vez (...) Provar que quem tem mais do que precisa ter, quase
sempre se convence que não tem o bastante (...) Que o mais simples fosse visto como o
mais importante (...) Fazer com que o mundo saiba que seu nome está em tudo e
mesmo assim ninguém lhe diz ao menos obrigado (...) Como a mais bela tribo, dos
mais belos índios. Não ser atacado por ser inocente (...) Assim pude trazer
você de volta pra mim, quando descobri que é sempre só você que me entende do
início ao fim (...) Nos deram espelhos e vimos um mundo doente. Tentei chorar e
não consegui”, me desculpem, mas não há uma melhor expressão que PUTA QUE PARIU!!!
Ufa! As vezes falta
fôlego para degustar tanta poesia! As vezes falta espaço na sala pra sair
dançando estas músicas. Só não falta a sensibilidade necessária para
entendermos o mundo de Renato Russo.
Se alguém ainda
duvidava do potencial da Legião Urbana no longínquo 1986, estas indagações
cessaram quando do lançamento de Dois! Um álbum de rock, de folk, lírico,
inquietante e atual, mesmo três décadas depois.
Enfim, o Dois é uma
verdadeira obra-prima!
Silvano Caiçara
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