A Tempestade ou O Livro dos Dias
Quando o poeta dá adeus!
A Tempestade ou Livro dos Dias foi um disco cercado de mistérios.
Num primeiro momento a banda finalmente realizaria seu velho desejo de lançar
um álbum duplo de inéditas. Depois de dois trabalhos solos Renato estava pronto
e, dentro do possível, tinha gana em gravar um disco novinho com a Legião
Urbana. Ele sentia saudades...
Renato também tinha muito
material, daí a possibilidade de um disco duplo. Gênios deste quilate quando
percebem que estão próximos do adeus, desenvolvem uma capacidade ainda maior de
criação. Renato escrevia como nunca.
Em estúdio a partir de janeiro
daquele 1996, começaram a trabalhar o novo projeto. Um Renato debilitado
fisicamente e com a voz dando sinais de cansaço. Por conta disso, Renato gravou
quase todo o disco fazendo a chamada voz-guia. Pela primeira vez, desde o Dois, decorridos exatos 10 anos, a
produção não contaria com Mayrton Bahia. Assim, coube a Dado Villa-Lobos, com
importante participação de Carlos Trilha, produzir o álbum.
Um dos maiores temores de Renato
Russo era soar falso a seus fãs. Nesse sentido, escolher a canção “A Via
Láctea” como música de trabalho era por demais revelador. Me lembro que depois
de ouvi-la, umas das minhas reações foi ligar para minha amiga Cilene e dizer
“Cilene, estou com medo!”. Ela também estava e conjecturamos uma série de
teorias. Quando saiu o disco e logo na abertura havia a frase “O Brasil é uma república
federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus”, de Oswald de Andrade, foi a
vez de ligar para a amiga Alcina. As reações e sensações foram as mesmas. Mais
óbvio impossível. Renato era isso, uma entrega de corpo e alma! E um enorme
respeito para com seu público!
O disco abre com “Natália” e seu
rock básico que, instintivamente, me remeteu ao álbum Monster, de 1994, do grupo R.E.M, uma das minhas bandas de
cabeceira. Obaaa! Um disco de rock! Baixo, bateria e guitarra. Sua letra ácida antecipava
os atuais tempos obscuros, onde “a mentira é salvação”. Assim como “Dezesseis”
que conta a saga de João Roberto, um garoto adolescente de classe-média que não
supera uma desilusão amorosa, mas num ROCKÃO DA PORRA!
Aliás, as citações de
Janis Joplin, Led Zeppelin, dos Beatles e dos Rolling Stones são incríveis.
Certamente muita gente os conheceu por conta desta referência. Já a canção “L´Aventura”,
homenagem ao filme homônimo de 1960 de Michelangelo Antonini, trata de amor à
maneira Renato. Alguém que marcou demais, se foi, faz falta, mas vida que
segue. Tudo muito bem conduzido pelo diálogo entre violões e guitarras de Dado
e a batida exata da batera de Bonfá. “Música
de Trabalho”, num tom mais lisérgico e um teclado pra amenizar, segue com distorções
de guitarras e uma bateria rhytthm track,
tipo “Perfeição”.
Claro que o clima mais marcante
do trabalho está no componente emocional estampado na já citada “A Via Láctea”.
Uma canção melancólica e angustiante que desnuda seu autor, a quem a vida
parece já ter cansado além da conta. Suas desilusões amorosas passam por “Longe
do Meu Lado”, “Música Ambiente”, “Mil Pedaços” e “Quando Você Voltar”. Uma
poesia melhor que a outra e não necessariamente nessa ordem. Renato não esconde
que sempre quis o perigo, mas estava sangrando sozinho. O poeta estava
realmente afiado. E como não se emocionar ao ouvi-lo se despedindo dos pais, do
filho e dos amigos na bela “Esperando Por Mim”, já num tom mais alto, com
violões e guitarras, mais uma vez, harmoniosamente aliadas a uma bateria como
um mantra. Mais uma letra de arrepiar e, claro, chorar!
Renato não se esqueceu nem das
coisas do dia a dia, como em “Leila”, que retrata uma mulher genuinamente
brasileira, guerreira, vítima de algum macho fujão, mas que a sociedade adora
julgá-la. E olha, que em 1996 não se falava no emponderamento feminino. Aliás,
Renato tinha uma sensibilidade absurda, senão, como explicar uma composição
como “1º de Julho”, feito à amiga Cassia Eller quando estava grávida? Faz todo
sentido do mundo ter entrado no repertório deste álbum. Este disco também traz
“Soul Parsifal”, uma parceria com Marisa Monte.
Pra fechar o álbum “O Livro dos
Dias”, iniciada por uma bateria marcial, somado àquele teclado característico
da Legião, uma suíte. Já a letra... bem!!! Ah a letra! O que concluir dos
versos “meu coração não quer deixar meu corpo descansar”? É meus amigos, o
poeta cansou. Como ele mesmo diz em “Longe do Meu Lado”, “Não estou mais pronto
para lágrimas”. Eu queria não estar Renato, mas escrever sobre esse disco torna
impossível segurá-las. “Vem de repente um anjo triste perto de mim”!!!
Quanto ao nome do álbum é curioso
que A Tempestade, era o nome preferido
de Renato, muito provavelmente por ser a última peça escrita por Shakespeare.
Já o Livro dos Dias era a preferida
de Dado e Bonfá. Então, juntou-se os dois nomes, mas a canção “A Tempestade”
ficou de fora.
Ninguém, além da banda, sabia da
real condição de saúde de Renato. Pensando nisso, a decisão de não lançar todo
o material produzido de uma só vez foi a mais acertada. O que ficou de fora
deste disco culminou em Uma Outra Estação,
lançado menos de um ano após a morte do Renato.
A Tempestade ou Livro dos Dias foi a saída de cena do Renato. Um
sujeito que não veio ao mundo a passeio. Marcou gerações contemporâneas e as
futuras. Seu legado permanece tão rico e atual quanto no tempo em que foram
escritas. Nos faz falta, mas está sempre pronto para “caminharmos lado a lado
por amor”!!!
Texto de Silvano Caiçara
Editor do Blog De letra e Caneta
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